“Quando a Verdade se encontra no gesto de misericórdia”

XV Domingo Comum
( Dt 30, 10-14; Sl 68; Col 1, 15-20; Lc 10, 24-37)
“Quando a Verdade se encontra no gesto de misericórdia”
O Papa Francisco têm chamado muito nossa atenção acerca de nos tornarmos uma Igreja marcada pelo binômio da “proximidade e da misericórdia”. Dois termos absolutamente teológicos e que permeiam desde sempre a longa tradição judaico-cristã. O evangelho deste final de semana narra a parábola do bom samaritano. É um belíssimo exemplar da acurada inteligência de Jesus Cristo em apresentar sua Palavra de forma que tanto doutos como homens simples a compreendam e a acolham em suas vidas.
A Palavra de Deus recorda um certo homem, inominado que descia de Jerusalém até Jericó (Lc 10, 30), nada sabemos da índole deste homem, se era um mercador, um judeu praticante, um bandido salteador, ou um migrante em busca de novas oportunidades, apenas permanecemos com a mensagem do evangelho, que era um “homem”. E é o que basta para Cristo, a dignidade presente na humanidade.
Durante seu itinerário pela estrada foi assaltado por ladrões: “estes arrancaram-lhe tudo, espancaram-no e foram-se embora deixando o homem quase morto” (Lc 10, 30). Lugar comum de quem faz travessias perigosas na vida. De quem anda por “ruelas e bairros violentos”. Hoje por exemplo muitos migrantes tentam passar do Norte africano até o sul da Europa e durante suas viagens, perecem no caminho, naufragam mar a dentro sem quase nenhum socorro, como se estivessem invisíveis. Outros pelas estradas são vítimas inocentes das injustas guerras que arrancam tudo da vida humana, e há ainda os assolados pela insegurança e violência das grandes cidades.
No entanto o que deve chamar nossa atenção e coração não está na presença do mal nesta parábola evangélica. O mal não é o centro do texto de são Lucas, mas o bem que a imponderável situação proporcionou.
Talvez aprender a tirar de uma situação difícil, insustentável, indesejada um grande bem seja um dos exercícios mais nobres da humanidade e de quem se denomina discípulo de Cristo. Este homem foi deixado na estrada quase morto. Quantas pessoas diariamente encontramos pela estrada? Quantos nas calçadas, quantos passam por nós maltrapilhos e assaltados pela própria condição de vida. Mas não basta apenas um sentimento de culpa é preciso um sentimento mais nobre: a palavra dá um nome a este sensibilidade, chama-a de compaixão ou misericórdia.
A conhecida parábola começa com uma pergunta imposta pelo escriba à Jesus: O que devo fazer para possuir a vida eterna? Jesus responde sobre o que diz os mandamentos e como o escriba o lia: “Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todas as suas forças e de todo o seu entendimento’ e ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’”.
Disse Jesus: “Você respondeu corretamente. Faça isso, e viverás” (Lc 10, 27).
Na parábola Jesus quer nos fazer compreender que na vida cristã não basta saber o principal mandamento de cor e salteado. Tê-lo na ponta da língua como o tinha este doutor da lei, é necessário também “fazer isso para viver” (27). O cristianismo não é um religião que só importe o conhecimento, o saber, a doutrina, o catecismo, a razão, isso tudo é muito singular e importante, mas é preciso a pratica, a vida, uma ciência do amor e da misericórdia. Por isso é que Nosso Senhor conta a inteligentíssima parábola do bom Samaritano se fazendo entender tanto pelo escriba como por todos seus ouvintes.
Na parábola nem o sacerdote nem o levita se compadecem do homem na beira da estrada somente um samaritano: “Este viu e sentiu compaixão, e aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre o seu animal, levou-o para uma estalagem, e cuidou dele;
E, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu to pagarei quando voltar. (Lc 10,35). O Samaritano mesmo não sendo hábil e conhecedor da lei como aquele escriba, manifesta um saber complementar que deve permear nossa vida cristã e sem o qual a fé cristã pode estar reduzida a mera gnose: saber e especulação sobre enunciados mas que pode comprometer nossa salvação.
Que nosso Senhor faça-nos ver e torne-nos próximos de nossos irmãos vulneráveis que se encontram nas estradas, nas ruas, invisíveis ainda para tantos e tantos de nós!!!!

“Prefiro uma Igreja ferida, acidentada e enlameada por ter saído pelas estradas do que uma Igreja enferma por seu fechamento e comodidade (…)” (EG 92)

XIV DOMINGO COMUM

(Is 66, 10-14; sl 65; Gl 6, 14-18; Lc 10, 1-9)

Prefiro uma Igreja ferida, acidentada e enlameada por ter saído pelas estradas do que uma Igreja enferma por seu fechamento e comodidade (…)” (EG 92)

A liturgia deste final de semana toca em um dos principais aspectos da evangelização: a da colaboração. Colaborar é trabalhar com alguém. Jesus, mesmo sendo Deus (Fl 2, 5), não quis realizar sua obra a sós, Ele sempre desejou partilhá-la com alguém. Muitas vezes a compartilhava com seu Pai, onde recolhido e a “sós” com o Pai orava noites inteiras, com certeza, nesta intimidade com Deus, Ele o apresentava alegrias e desafios da missão confiada.

Como Jesus Cristo está entre nós e o Pai, como o mediador, o sumo sacerdote presente na epistola aos Hebreus, Ele desejou compartilhar sua missão conosco também. É desta missão compartilhada que nos fala a liturgia deste domingo.

Quando o Papa Francisco insiste conosco em sermos uma Igreja em saída e em estado permanente de missão está apontando para o que é essencial na evangelização e na natureza da Eclesiologia. Não devemos trabalhar sozinhos, não devemos permanecer fechados em nossos grupinhos, movimentos, pastorais, associações, congregações, como se fossemos partidários em disputa “do carisma mais santo e inspirado”, mas cooperarmos uns com os outros e ao mesmo tempo, para que não caiamos na tentação da auto-referêncialidade, isto é, uma ser Igreja que se apresenta no mundo tendo já cumprido sua missão e esquecendo que o Espírito continua a soprar e a inspirar nova forma de apresentar a boa nova ao mundo.

O Evangelho deste final de semana apresenta a missão dos 72 discípulos. Jesus já havia chamado os doze para estarem com Ele e evangelizarem, no entanto percebe a grandeza da messe e amplia ainda mais os seus discípulos.

O ensino dos 72 missionários têm muito a dizer-nos hoje. Jesus confia nas gentes. Ele delega trabalhos, envia em missão, destina seus discípulos para lugares que Ele mesmo devia ir e obras que Ele mesmo deveria realizar. Cristo não concentra tudo em si mesmo. Sabe-se um enviado do Pai e reconhece abençoados àqueles que vão em seu nome: “Como o Pai me enviou também eu vos envio” (Jo 20 ss).

No entanto a missão lucana têm lá suas características muito específicas, originais e atuais: “O Senhor escolheu outros 72 discípulos e os enviou dois a dois, na sua frente a toda cidade onde ele devia ir. E dizia-lhes: a messe é grande mas os trabalhadores são poucos, por isso pedi ao Senhor da messe que mande trabalhadores para sua messe” (Lc 10, 1-2).

Ir de dois a dois, e orar durante a missão é a grande novidade do evangelista. É a característica de seu evangelho. O que dá sentido e segurança aos missionários não é o material, os bens, mas o Espírito Santo, e Ele age na comunidade: “onde 2 ou mais estiverem reunidos no meu nome eu estarei com eles” (Mt 18, 20).

Os discípulos enviados em nome do Senhor não levam muita coisa nas mãos, acabam sim recolhendo dons e graças desta experiência missionária: a primeira é a Paz: “Bem aventurados os promotores da paz por que serão chamados, filhos de Deus” (Mt 5, 10). O primeiro sinal é o desejo da Paz. O anúncio do evangelho é a chegada da Paz da boa nova, da salvação, das curas, da superação do mal, eis o fruto da missão. Quando olhamos mais profundamente para as realidades de nosso contexto pastoral, este evangelho deve nos iluminar e questionar: Como têm sido nossa missão? Como nossas comunidades eclesiais dispersar nas cidades e interior recolhem os frutos de sua presença? Como estamos acolhendo o pedido de Francisco de estarmos em saída e permanentemente em estado de missão? Como estamos compartilhando a evangelização com os outros? Como estamos integrando outros no processo missionário da fé?

Perguntas difíceis de serem respondidas, mas importantes serem feitas em nosso atual contexto eclesial.

Além da paz Jesus deixa claro a seus discípulos a condição cultural deste envio missionário: “enviados como cordeiro em meio a lobos” (Lc 10, 3). É condição sine qua non para os discípulos uma grande possibilidade de rejeição à palavra: não por causa da Palavra, mas a causa do que esta mensagem pode provocar na cultura. Se os discípulos encontram e se deparam com sementes do Verbo (Justino, 165 Dc), já espalhadas na sociedade então a mensagem gera paz, harmonia, justiça e verdade, mas como grande parte do substrato da cultura sofre com uma estrutura de pecado pessoal e social que aponta outros valores e princípios, a Boa Nova da evangelização encontrará resistência, fechamento e rejeição. No entanto até mesmo ai, os discípulos assumem e atualização a missão do seu Senhor: “O filho do homem deve sofrer muito da parte dos chefes do povo (…) “ (lc 9, 22).

Nenhuma situação deve amedrontar ou intimidar os missionários. Nem mesmo a perseguição. Os enviados não anunciam a si mesmos, mas a Cristo e como Paulo na segunda leitura diz-nos: “quanto a mim que eu me glorie somente da cruz de Cristo, Nosso Senhor. Por Ele, o mundo está crucificado para mim, e eu crucificado para o mundo” (Gl 6, 14) .

É bem provável que não encontremos somente glórias na missão, mas não esqueçamos: Anunciamos a Cristo, que é loucura para os que perecem, mas para nós, que fomos salvos é, poder de Deus” (1Cor 1, 14).

Saíamos a anunciar e chamemos mais colaboradores para esta missão.

A Fé de Pedro

XII Domingo Comum

(Zac 12, 10.11-13,1; Sl 62, Gl 3, 26-29; Lc 9, 18-24)

Tão importante quanto confessar a fé é abraçar integralmente o que se confessa!

Neste XII domingo do tempo comum Jesus vêm nos ajudar a discernir algumas coisas importantes no caminho da fé. Estão em jogo sempre nossas expectativas do que significa seguir Cristo, tornar-se um discípulo, aderir a sua escola de vida.

Enquanto orava, (característica típica de são Lucas, ao qual, apresenta-nos Jesus em oração nos momentos decisivos de seu ministério), questiona seus discípulos. Perguntar, questionar é um método antigo usado por tantos sábios, que assim faziam seus discípulos buscar dentro de si respostas, aprendizados, saberes recolhidos. Jesus de Nazaré quer saber de seus discípulos se estão compreendendo realmente sua identidade e missão, Jesus ao questioná-los quer saber quais são as suas expectativas em relação a seu seguimento, quer ajuda-los a discernir melhor as coisas, a purificar as ideias, corrigir quem sabe suas concepções equivocadas. Mas para isso Ele precisa saber. Precisou perguntar quem era Ele para as pessoas e quem era Ele para os próprios discípulos! São perguntas importantes, necessárias e que ainda hoje precisam ser refeitas. Há muita confusão por ai sobre quem é realmente Cristo. Também nós precisamos cotidianamente nos perguntar: “E vós quem dizeis que Eu sou?” (Lc 9, 20). Na época de Jesus, no contexto desta pergunta haviam muitas expectativas sobre o Filho do Homem. Havia muita espera na Palestina por sua vinda eminente. Havia entre as pessoas esperanças e mais esperanças que o “Messias” daria um jeito em tudo: expulsaria o mal, libertaria os hebreus da dominação Romana, instauraria um reinado messiânico forte, totalmente puro e plenipotenciário. Ele o messias das expectativas messiânicas, faria tudo por nós, faria tudo em nosso lugar, resolveria nossos problemas, religiosos, morais e sociais com sua força. No entanto esta expectativa digamos, pré-pascal, não combinou com a resposta de Pedro e nem com a réplica de Cristo: “O Cristo de Deus. Mas Jesus proibiu-lhes severamente que contassem isso a alguém. E acrescentou: o Filho do Homem, deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da lei, deve morrer e ressuscitar ao terceiro dia” (Lc 9, 22).

Jesus como um Rabi, um bom mestre, ouviu atentamente as perspectivas dos discípulos, após ampliou suas respostas. A consideração de Cristo sobre o seu messianismo, desconcertou as expectativas judaicas. Jesus de Nazaré nada tem a ver com um líder poderoso e político que os judeus esperavam. Jesus Cristo em nada se parecia com um plenipotenciário temporal, pelo contrário, se apresenta descolado de todo poder instituído por Israel “deve sofrer, ser rejeitado (…)”. (Lc 9, 20); é um outro enfoque sobre o seu messianismo, mais real, mais verdadeiro e bem mais libertador.

Nós também caríssimos para entramos na escola de vida de Cristo devemos saber muito bem o que iremos assumir: Também temos nossas expectativas, também esperamos que o “O Cristo de Deus”, venha resolver ou ao menos solucionar todas as nossas duvidas e angustias. Bem mais do que resolver por nós, ele dá sua vida por nós e assim salvando-nos, nos ensina que somente abraçando este caminho encontraremos salvação para nosso caminho.

Tão logo após Pedro haver confessado que Jesus era o Cristo de Deus, Jesus começou a ensinar qual a identidade profunda deste mistério: “todo aquele que quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Lc 9, 23). Não é um caminho de glória que Jesus apresenta a Pedro e seus companheiros. Ele está sendo muito claro com seus discípulos: “se quiserem vir atrás de mim, se quiserem me seguir, se quiserem testemunhar minha vida no mundo, então abracem este caminho de cruz e rebaixamento, o mesmo que assumi”. Nossa salvação depende dele: “pois todo aquele que quiser salvar sua vida, perdera-la e todo aquele que perder sua vida por causa de mim a encontrará” (9, 24).

Neste domingo pode ser uma grande oportunidade de confessarmos Jesus, o Cristo de Deus em nossas comunidades. Celebramos a jornada do refugiados. Acolher quem não tem aonde ir é um testemunho de fé: “era estrangeiro e me acolhestes” (Mt 25 ss).

Na segunda leitura Paulo exorta-nos sobre a grande novidade do cristianismo: “ o que vale não é ser mais judeu, ou grego, ou escravo ou livre, ou homem ou mulher, pois todos vós sois um só em Jesus Cristo” (Gl 4, 28). É uma palavra forte e revolucionária e que não impõe muros de separação ou divisão. Em Cristo somos todos um. Confessar a fé é importante, mas viver suas exigências também.

 

Festa da Santíssima Trindade

(Prov 8, 22-31; Rm 5, 5, 1-5; Ev Jo 16, 12-15)

Agora permanecem a fé, esperança e a caridade (1 Cor 13, 13).

Celebramos neste final de semana a Solenidade da Santíssima Trindade, o mistério maior que completa toda a nossa fé no Deus Uno e Trino. Assim professamos todos os domingos na missa: “Cremos em Deus Pai todo poderoso (…) e em Jesus Cristo seu único Filho (…) Creio no Espírito Santo (…)”. O dogma maior fora definido pela Tradição da Igreja apenas no Concílio Niceno-Constantinoplitano em 381, após décadas de disputas e reflexões teológicas que envolviam basicamente a divindade e filiação do Filho (325 Nicéia) e após a divindade do Espírito Santo que com o Pai é adorado e glorificado (Constantinopla 381). Claro que apesar do evento histórico acerca da definição do grande mistério da fé ter sido prolongado até a segunda metade do IV século do cristianismo, não quer dizer que a fides trinitária tenha iniciado somente neste período. De forma alguma. A Igreja desde seus primórdios manifestou e professou a fé em Deus Pai, revelado por seu Filho Jesus e no Espírito Santo, celebrado no dia de Pentecostes. Toda a tradição neo-testamentária é testemunha de que a primeiríssima geração cristã, concebeu a fé e explicitou a Deus Uno e Trino.

No entanto é sempre bom recordar que nossa fé na Trindade não deve ser concebida com um “enigma a ser desvendado”, ou um problema que somente os filósofos católicos da escolástica estariam aptos e preparados para solucionar. A Trindade mais que um enigma ou problema a ser suplantado é bem mais mistério de amor e comunhão a ser contemplado e adorado. A questão é bem esta: bem mais adoração do que especulação!

No Evangelho deste domingo ouvimos o difícil discurso de Jesus sobre o Paráclito, revelador da Verdade. Digo difícil discurso pois sabemos que existem textos, frases e versículos no Evangelho que nos são de simples assimilação e acolhida, entretanto não há nenhum problema pastoral em reconhecer que os autores dos Evangelhos as vezes dificultaram as coisas para nós, talvez já antecipando que algumas “verdades da fé” (dogmas-Símbolo), compreenderíamos somente mais tarde ou na linguagem teológica: “Quando vier o Espírito da Verdade” (Jo 16, 13).

Há disperso em nosso contexto um desejo pela verdade. Uma pressa existencial por respostas às nossas dúvidas e inquietações. De certa forma sempre fomos assim, ansiosos por respostas, seguranças e afirmações para nossas indagações pessoais. Mas no contexto atual de mídias e redes sociais esta realidade se inflacionou de forma que uma geração anterior a nossa não imaginaria. O Evangelho desta solenidade toca a grande Verdade de nossa Fé e por conseguinte recorda-nos do problema e do lugar onde podemos encontrar e discernir sobre a Verdade. Afinal onde ela se encontra? Onde as pessoas se encontram com a Verdade? O que é verdade em nosso contexto onde se fala tanto em Pós-verdade ou fakenews? Para o evangelista João a Verdade é sempre Cristo, revelação do Pai: “Eu sou o Caminho a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6). No entanto o evangelho deste domingo fala-nos de uma verdade que há de ser concebida a frente de nós, no futuro e que os discípulos há compreenderiam somente depois. Perguntemo-nos: Jesus já antecipara uma pós-verdade em sua mensagem? Obviamente que não. Quando diz abertamente a seus discípulos que o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá a plena verdade (Jo 16, 13), está reafirmando a seus interlocutores que o Paráclito conduzirá seus discípulos e amigos ao complemento de toda a mensagem do Senhor, de todo o seu Kerigma, de toda a plenitude da Tradição, que a primeira geração só compreenderia e acreditaria (crer) após o mistério Pascal. Em outras Palavras, com a Cruz, a mensagem não terminou. Ela a morte do Senhor, é sua “Glorificação”, é a “Hora” tão esperada e aguardada por Maria e pelos discípulos que o Espírito revelará. Não Pós-verdade e sim plenitude de uma verdade: “Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso, disse que o que Ele receberá e vos anunciará é meu” (Jo 16, 15).

Porém o problema da verdade em nosso contexto continua de grande complexidade. Uma sociedade, uma geração que perde o horizonte da verdade, além de optar pelo relativismo, acaba por pensar ser real e verdadeiro qualquer informação. Isto revela um sério problema moral e antropológico. O homem na pós-verdade ou na onda do fake News, se torna frágil, superficial e líquido. O vento das informações o levam ora para um lado, ora para outro, perdendo o horizonte primeiro onde estava alicerçado. É como aquela casa construída sobre a areia, a tempestade nem precisa ser tão tremenda para lhe arrancar suas seguranças e fundamentos.

A Verdade que o Espírito veio revelar as discípulos é que a plenitude da mensagem da Revelação é Trinitária, é a obra do Pai, com suas duas mãos Filho e Espírito como Irineu de Lion recorda. Esta Verdade contém, a Paternidade amorosa, a redenção filial chegando ao extremo da Cruz e a santificação do Espírito Santo. Por isso está contida neste anuncio: paixão, morte e Ressurreição, como no dizer Paulino da segunda leitura: “e não só isso, pois nos gloriamos também de nossas tribulações, sabendo que a tribulação gera a constância, a constância leva a uma virtude provada, a virtude provada desabrocha em esperança, esperança esta que não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 3-5).

Aprendamos a lição da Trindade e evitamos os fake News. A Trindade nos ensina que a Verdade vem a nós. Ela é quem toma iniciativa de revelar-se ao homem. Nós até “tateamos” a verdade, “buscamos, batemos sua porta” através do bom exercício da razão. Mas ela é bem maior. Está inserida no mistério Trino, superando qualquer falácia contemporânea que está ai somente para confundirmos, enganarmos, dispersarmos e dividir-nos. A Verdade Trinitária é sempre unidade e comunhão. No final ela sempre prevalecerá.

 

Solenidade de Pentecostes

(At 2, 1-11; 1 Cor 12, 3-13…Jo 20, 19-23)

Pentecostes, comunicação do amor!

Celebramos neste final de semana a solenidade de Pentecostes. Esta festa religiosa judaica, celebrava as primícias das colheitas que eram oferecidas ao Senhor. Os primeiros frutos, as primeiras colheitas somente possíveis por causa da libertação de Israel da servidão no Egito. Na terra prometida, Pentecostes recordava a Páscoa e por isso oferecia os frutos ao autor e doador de todas as coisas.

No Novo Testamento Pentecostes também celebra as primícias da Igreja.  São os seus primeiros frutos: a comunidade Apostólica reunida com Maria no Cenáculo e aberta para o mundo inteiro. Estes frutos que o Espírito concede a Igreja são manifestados em muitos sinais: Vento forte, nas línguas de fogo que pairavam sobre suas cabeças e sob um anúncio universal de Salvação que alcança o mundo conhecido de então: “não são todos Galileus a falar? Então como é que cada um de nós os ouve falar em nossa própria língua? Partos, Medos, Elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, da Frígia, da Panfília e da Ásia (…) Roma (…) ouvimos todos proclamar as maravilhas de Deus em nossa própria língua” (At 2, 9-11).

Talvez um dos grandes dilemas de nosso mundo globalizado seja o da compreensão e do entendimento. Podemos falar uma mesma língua com sotaques e traços culturais diferenciados, mas nem sempre isso é garantia de que estamos nos entendendo. A linguagem é mediada por sinais e códigos simbólicos. Por vezes reconhecemos o que o outro está dizendo, entendemos sua fala, mas não acolhemos as suas ideias ou suas proposições. É sempre este o problema da linguagem. Nem sempre ela é somente uma questão de “atos de fala” ou de “significantes”, muitas vezes, existem obstáculos e ruídos que mesmo inconscientes estabelecem muros e barreiras que nem “se gritarmos” seremos capazes de ser ouvidos: Como aquela mamãe que diz ao filho pequeno: “Já te falei mil vezes não faça isso…no entanto a criança ouve e não quer escutar”! O fenômeno de Pentecostes é o da compreensão. A língua acolhida e compreendida por todos os povos do entorno mediterrâneo é a do Espírito de Deus. E seu anúncio universal é a da Salvação em Cristo. Todos agora falam e compreendem que Jesus, ressuscitou e é nosso Salvador.

Mas Pentecostes não é somente compreensão, mas é anuncio e fala também. A Palavra (Kerigma) para aquela primeira geração Apostólica acompanhada dos sinais, será a única forma que terão de semear a Salvação em Cristo a todas as nações. Não apenas na Galileia, não circunscrito apenas há uma região, ou cultura, ou língua. Não mais limitados aos códigos da Lei, mas cheios do Espírito Santo que passou a escrever a lei do amor, não em tábuas de pedra, mas dentro de seus corações: “e dar-vos-ei um novo coração, tirarei do vosso peito este coração de pedra e vos darei um coração de carne. E porei dentro de vós o meu Espírito” (Ez 36, 26-27).

A solenidade de Pentecostes também é permeada por outra forma de linguagem: Os carismas, serviços e ministérios que o Espírito concede a Igreja manifestam uma forma de anúncio na prática. São muitos os carismas e ministérios, como são muitos os povos e nações que acolheram o dom do Espírito, mas há nesta diversidade algo comum, algo que os unifica e os identifica; a unidade em um contexto de diversidade: “há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito. Há diversidade de ministérios, mas um mesmo é o Senhor que realiza todas as coisas em todos” (1 Cor, 12, 6).

No contexto da globalização os limites espaciais são questionados. As fronteiras teoricamente deixam de existir e se difunde a ideia de um mundo todo interligado e comunicativo.  Mas sabemos que as coisas não são bem assim. Na prática o que temos visto é um mundo onde os limites de cor, raça, cultura e língua, estão cada vez mais evidenciados e se possível separados. Crescem os muros, os preconceitos, as divisões, a xenofobia retorna com muita força e as diferenças entre ricos e pobres aumenta e se torna cada vez mais escandalosa. A celebração da vinda do Espírito sobre a Igreja rejeita esta mentalidade. Ela respeita e considera em muito a diversidade, as diferenças, mas reconhece a unidade: “ Como o corpo é um, embora tenha muitos membros, e como todos os  membros do corpo, embora sejam muitos, formam um só corpo, assim também acontece com Cristo” (12, 12).

Uma outra linguagem que Pentecostes apresenta-nos e não poderá jamais ser abolida é a da liberdade: “é para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5, 1). A liberdade é um dos dons mais expressivos do Espírito. A comunidade cristã nascente se caracterizou após Pentecostes como uma comunidade de pessoas libertas. A primeira libertação operada pelo Espírito foi a do medo e da insegurança por parte dos judeus: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas, por medo dos judeus (…) Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: ‘ a Paz esteja convosco’” (Jo 20, 19). No lugar do medo e das portas fechadas, surgiram dois dons especiais do Espírito, a “paz” e a “alegria”. O Espírito Santo abriu-nos duas portas na realidade: as portas do Cenáculo para o mundo e para a evangelização de todos os povos e as portas do coração dos discípulos para a Graça de Deus. O dom da liberdade concedido em Pentecostes à Igreja nascente se apresenta em dois modos de ser: um primeiríssimo “ad extra”; isto é, para fora, para o mundo e todas as nações! Poderia ser comparado com as línguas de fogo sobre apóstolos que os encheu do Espírito e se fez comunicar a todas as gentes: “ ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas conforme o Espírito os inspirava” (At 2, 4). Mas há também inscrito no coração humano uma outra dimensão do dom de Pentecostes esta ad intra, para dentro, para o íntimo. A porta que o Espírito abriu dentro de nossa alma, é tremendamente libertadora. Libertou-nos em primeiro lugar do “medo para o amor”; “no amor não há temor” (1 Jo 4, 19). Fez-nos reconhecer agora Deus como um Pai amoroso, sempre revelado por Jesus. Liberta-nos da concepção de um Deus distante, preso a lei, de quem jamais iríamos ser amigos e próximos. Mas o Espírito realiza a grande libertação do pecado, do grande obstáculo interno, do muro construído por nós mesmos que impede-nos de ver e contemplar a beleza de Deus e de reconhecer o outro como imagem e semelhança Dele: “ Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados, a quem não os perdoardes , eles lhes serão retidos” (Jo 20, 23). Foi um sopro, um hálito divino que derrubou as portas internas dentro de nós.

Acolhamos este sopro, adoremos estes dons concedidos pelo Espírito de Deus!

“Não se perturbe nem se intimide vosso coração” (Jo 14, 27)

VI Domingo da Páscoa

(At 15, 1-2.22-29; Sl 66; Ap 21, 10-23; Jo 14, 23-29)

Não se perturbe nem se intimide vosso coração” (Jo 14, 27)

Encontramos na liturgia deste domingo este versículo tão interessante: “não se perturbe”. É sempre bom escutar novamente esta palavra de Jesus pois diz muito a nossos tempos. Vive-se um tanto de perturbações e aflições na vida. Por vezes elas estão fora de nós: é a sociedade que está perturbada, a política, o País, a economia, há de certo perturbações em todos os lados. Outras vezes elas habitam nosso interior: É nossa alma, a casa que é mais nossa, que se desarrumou, se desconcertou e perdemos o fio que liga todas as coisas e lá dentro percebe-se também um monte de perturbações.

Mas é importante recordar a Palavra de Jesus para este VI Domingo da Páscoa: “Não se perturbe nem se intimide o vosso coração” (Jo 14, 27).

De certo que Jesus disse isto a seus discípulos, pois não queria que seus amigos, idealizassem a vida cristã. Imaginassem que junto Dele e dos irmãos não enfrentariam mais nenhuma contrariedade ou perseguição, não seriam expostos a perigos violência ou doenças, não teriam mais contato com o mal e a injustiça, por isso ele preparou o coração de seus discípulos dizendo: “não se perturbe e nem se intimide vosso coração” (Jo 14, 27).

A própria Igreja não está isenta de perturbações e aflições, nunca esteve e certamente jamais estará. Na primeira leitura ouvimos o famoso relato do sínodo de Antioquia. Foi um momento tenso e difícil para Igreja nascente. Os irmãos vindos do judaísmo queriam exigir para os que vinham do paganismo a circuncisão para que alcançassem a salvação. A palavra diz que isto: “provocou muita confusão e houve uma grande discussão de Paulo e Barnabé com eles” (At 15, 2). Sentimos isto também hoje em dia: irmãos que pensam diferente, que rezam de forma diferente, que receberam uma formação diversificada, que tiveram uma educação na fé católica diversa e que por causa disso, devido a sua história de vida e formação cristã, passam a exigir um certo unilateralismo na Igreja que prejudica a liberdade e a comunhão, podem acontecer divergências de ponto de vista, mas nada deve chegar ao ponto de ferir a unidade. A Igreja deve ser sempre a mediadora da reconciliação e da paz. Como foi em Antioquia, continua sendo hoje em nossos tempos, o lugar do bom discernimento do Espírito: “Então decidimos de comum acordo, escolher alguns representantes e manda-los até vós, junto com nossos queridos irmãos Barnabé e Paulo (…) Porque decidimos, o Espírito Santo e nós, não vos impor nenhum fardo” (At 15, 28).

Assim como a paz voltou para a Igreja nascente, superando o problema da divisão que se impunha, esta mesma paz pode voltar a habitar dentro de nós e “fazer a volta” sobre as nossas perturbações cotidianas. Se Jesus não escondeu a seus discípulos que neste mundo teríamos serias aflições, também afirmou que este mundo será também um lugar de paz e reconciliação: “Deixo-vos a paz, a minha paz eu vos dou, mas não como o mundo.” (Jo 14, 27). É de paz que precisamos. É a ela que procuramos e buscamos. E é ela que semeamos, pois é uma bem-aventurança: “Bem aventurados os promotores da paz, pois serão chamados filhos de Deus” (Mt 5, 11). A paz foi o primeiro dom da Ressurreição no Cenáculo: “Chegou Jesus e pôs-se no meio deles e disse: a paz esteja convosco” (Jo 20,19).

Se nosso tempo se apresenta como um palco de contradições e aflições em todas as partes do mundo, o dom da Paz do Ressuscitado será sempre a melhor e mais profunda resposta a este cenário. Cristãos sejamos construtores de paz. A paz exige em primeiro lugar que se queira olhar profundamente para os conflitos, para as causas profundas dos conflitos, não apenas se perdendo em suas consequências. Não se constrói a Paz, com soluções paliativas. Não se edifica o dom cristão da Paz construindo muros, evitando o conflito social que notoriamente se verifica acolhendo e integrando migrantes dentro de nossa casa. Atitudes de integração dos “pequeninos e necessitados” exigem de nós capacidade de sair de si, abertura, diálogo, solidariedade. Talvez não resolvamos todos os problemas dos irmãos refugiados “aqui e acolá”, mas começamos a fazer alguma coisa de bem para o outro.

Da mesma maneira as perturbações que habitam nossa alma, tem certamente suas causas. Ora são conscientes para nós: estou assim intranquilo, inquieto, ansioso, por isso ou aquilo, ora nos são inconscientes, as suas causa escorrem de nossas mãos, mas a paz como resposta para isso está lá, no dom de Cristo.

A paz que Cristo doa a seus discípulos nada têm de alienada da realidade: “ Deixo-vos a paz, a minha paz eu vos dou, mas não como o dá o mundo” (27). A paz do mundo é sempre paliativa, as vezes interesseira e egoísta, descomprometida com o outro. A paz do Senhor não: “Minha paz eu vos dou”! O Shalom hebraico provoca sempre um estado de equilíbrio social: a justiça e a paz lhe são equidistantes. Isso é possível? Isso é uma utopia cristã? Claro que neste mundo teremos aflições, mas o dom do Espírito para enfrentá-las. O velho adágio patrístico que acompanhou os três primeiros século da Igreja no conflito com as correntes vindas do gnosticismo serve para a construção da paz: “o que não é assumido não será redimido”. O que não for assumido realmente, e que está nas aflições e perturbações do mundo não poderá ser redimido. O que não é assumido lá dentro de nós, que nos desarruma, atrapalha, perturba, não será curado. Não esqueçamos: “No mundo tereis aflições, coragem eu venci o mundo” (Jo 16, 33)

IV DOMINGO DA PÁSCOA

IV DOMINGO DA PÁSCOA

(At 13. 43-52; Ap 7, 9 ss, Jo 10, 27-30)

O evangelho deste final de semana começa com uma frase que deve chamar nossa atenção: “minhas ovelhas escutam minha voz, eu as conheço e elas me seguem” (Jo 10, 27). A frase-versículo posta na boca de Jesus, por são João indica que entre discípulos e Cristo existe uma relação, uma “liga” como há entre a figura do pastor e de suas ovelhas. Para são João o que faz com que as ovelhas sigam o pastor, se deixem conduzir pelo mesmo, acolham suas orientações e suas palavras, está no inusitado e simples fato delas ouvirem sua voz. Assim chegamos à conclusão que o que nos atrai para Cristo, o que nos faz segui-lo é ouvir sua voz e conhecê-lo, mais do que isto, só é possível conhecê-lo na medida em que a sua palavra alcança os nossos ouvidos e coração.

O IV domingo do tempo Pascal, nos faz revisitar temas sempre atuais na Igreja: o primeiro deles é o da vocação, pois celebramos em toda Igreja o dia dedicado para orarmos pelas vocações e outro, mui correlato com este é o de nossa qualidade de escuta e discernimento da voz de Cristo no mundo de hoje, tão exigente, atual e necessário. Só discerne uma vocação quem têm capacidade de ouvir um chamado. No barulho, na agitação, na dispersão somos todos surdos e desatento. No silêncio na oração, na meditação diária ouvir o Senhor se torna sempre de novo possível. É importante portanto criar espaço para que Deus possa falar.

No entanto é notório que o “mundo” passa por uma séria crise de audição espiritual. Ouvir a Deus no nosso contexto social é uma grande desafio, mas ouvir ao outro também. Não vivemos atualmente um ambiente que possibilite a escuta um dos outros, o diálogo, pelo contrário, nossas relações têm sido permeadas exatamente pela ausência da mesma e diante das diferenças se escolhe a ruptura ao invés do entendimento.

Há também um outro lado desta moeda sentida em nossos tempos: Discernir a voz de Deus no meio de tantas vozes. Reconhecer a voz do bom pastor no meio de tantos que se autoproclamam pastores de ovelhas. Quanto mais difícil se torna “ouvir a voz do bom Pastor” nos dias de hoje, mais se sente o rebanho cair em perdição, em ruina. A ovelhinha é assim. Para seguir o pastor, precisa ouvir sua voz e ouvindo-a deixa-se conduzir. Quando esta voz é autentica, integra, amiga, zelosa e cuidadora, a ovelha encontra o caminho, quando a voz é de um ladrão e salteador, todo o rebanho se perde. Nosso mundo precisa de bons pastores. Neste domingo, ao rezarmos pelas vocações, ao pedirmos ao Senhor da messe que envie operários, precisamos colocar no coração de Deus que envie também bons e santos pastores para o rebanho.

Resta-nos uma importante pergunta: Qual o critério para sabermos que é nosso pastor? Como saberemos discernir no meio de tantas vozes de hoje, quem é o pastor? O próprio evangelista João nos auxilia nesta interessante questão: “Eu dou-lhes a vida eterna e elas jamais se perderão. E ninguém vai arrancá-las de minha mão” (Jo 10, 28). Você deve ter conhecido pastores assim, extremamente dedicados e abnegados, capazes de perderem suas vidas, gastarem toda sua energia belo bem do rebanho. Eles realmente existem, estão nas periferias das grandes cidades visitando doentes e animando os enfraquecidos, ajudando os pobrezinhos e curando os enfermos. Seu trabalho é como o do bom pastor que Jesus aponta: é despretensioso, silencioso, mas constante, não aparecem nas mídias, geralmente não dão grandes notícias, nem chamam para si a atenção. Mas são alegres mesmo nas dificuldades, felizes na vocação, por que descobrem que ser pastor é viver para o outro, e em função de ser rebanho.

O critério para saber onde está o pastor e que voz devemos ouvir é este: “O Bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas, o mercenário que não é pastor, vê a aproximação do lobo e foge” (Jo 10, 11-12). Eis a resposta: o pastor oferece-se, dá a sua vida, o mercenário que finge ser pastor, quando percebe seu rebanho em perigo, foge! Como existe e conhecemos bons pastores, infelizmente não devemos ser tolos e ingênuos e nem tapar o sol com a peneira, pois existem por ai, espalhados no mundo da fé, mercenários e maus pastores. Estes se dizem pastores, se proclamam como a única via possível, mas as consequências de seu pseudo-ministério é desastroso para o rebanho. Neste domingo em que dedicamos para rezarmos para que o Senhor da messe envie mais pastores, peçamos que Deus toque nosso coração de pastor, ainda imperfeito e pecador e transforme-o para que seja como o coração de Cristo, Bom Pastor.  

“Domingo da Paixão, o serviço como expressão da realeza”

Domingo da Paixão

( Lc 19, 28-40; Is 50, 4-17; Fl 2, 5-12; Lc 23, 1-49)

Iniciamos com esta liturgia a semana Santa até sua conclusão com as celebrações do Tríduo Pascal em nossas comunidades eclesiais.

A liturgia deste domingo da Paixão nos apresenta dois movimentos teológicos não obstantes contrastes e difíceis de serem compreendidos por nós neste nosso tecido social, mas também de lento acesso para os contemporâneos de Jesus, seus discípulos e adversários espirituais. Jesus, no Evangelho introdutório, é revestido de uma realeza triunfal e logo após reveste-se do mais absoluto rebaixamento existencial. Aclamado como rei, é recebido na capital Jerusalém com cantos, hinos e aclamações messiânicas e tão logo irá se achar nos últimos dias de sua vida, zombado, ultrajado, torturado e acima de tudo: amplamente desacreditado. A partir deste profundo paradoxo que a liturgia do domingo da Paixão nos apresenta perguntamo-nos: O que realmente aconteceu para que houvesse uma mudança tão radical na perspectiva das multidões sobre o messianismo de Cristo? Ou nossa pergunta poderia ser feita a partir do próprio Cristo, de seu mistério mais profundo: Houvera uma transformação existencial propriamente em Cristo? Ambos questionamentos não devem ficar apenas no mundo das ideias, da mera especulação filosófica. O cristianismo não é um sistema filosófico ou social apenas. É sempre a pessoa de Cristo. E é esta realidade que deve iluminar nossas mentes e coração para compreendermos a Palavra (Lc 24, ss).

Na primeira leitura o cântico do servo de Isaías (Is 50, 4-7) apresenta-nos uma singular imagem do messias: Ele nesta perspectiva não é configurado a um rei, mas nem por isso, perderá sua função na realeza. Ela continua presente, inerente a ele, mas no linguajar profético de Isaías, é denominado “Servo” ou “messias servidor”: Alguém que resgata e salva não a partir do poder mas da humilhação, da obediência, de um oferecimento dos próprios sofrimentos. Conclui-se assim que o significado mais profundo deste messianismo esta associado à características opostas àquelas que as multidões depositavam em um primeiro momento em Cristo. Recordemos a resposta de Cristo, logo após a profissão Petrina acerca de seu messianismo:  “ 31 E começou a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do homem padecesse muito, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas, e fosse morto, mas ressuscitasse depois de três dias

O servo que o profeta Isaías oferece o exercício de seu messianismo nesta mesma ótica. Não somente para dentro de uma ação temporal, social e política, sua amplitude é bem maior e mais profunda. A libertação por ele oferecida ao invés se sustentar-se apenas no poder ou força temporal, fundamenta-se na entrega, na humilhação e no oferecimento de si. Isto será sempre de difícil compreensão a todos nós. Nossas expectativas de salvação e libertação estão sempre associadas a uma forma de poder e não a “forma servi”. Por isso sua realeza messiânica é bem mais vicária e expiatória do que autoritária e política. Se existe uma ato político no messias servo de Isaías, ele funda-se na obediência, no serviço ao próximo e na oferta gratuita de si mesmo: “O Senhor abriu-me os ouvidos, não lhe resisti nem voltei atrás. Ofereci as costas para me baterem e as faces para me arrancarem a barba, não desviei o rosto de bofetões e cusparadas (…) conservei o rosto impassível como pedra, por que seu que não sairei humilhado” (Is. 50, 4-7).

Na carta de Paulo aos cristãos de Filipos daremos um outro passo no mistério messiânico e soteriológico de Cristo. É certo que esta comunidade nascente, era muito estimada pelo apóstolo. As recordações de Paulo aos Filipenses são sempre muito empáticas. Paulo estabeleceu profundos vínculos com esta comunidade primitiva, mas nem por isso, se absteve de corrigi-los e exortá-los quando se fez necessário. É possível que estes cristãos apresentassem serias disputas entre si por uma possível liderança. O que costumeiramente acontece em comunidades que conhecemos: boas, vivas, ricas de ministérios e serviços, mas aqui e ali, percebe-se as disputas, as rixas a velha pergunta: “ Quem é o maior no Reino de Deus? (Mc 9, 34). Paulo não tomou uma criancinha e colocou-a no seu meio, como fez o seu mestre. Ele tomou a própria imagem de Cristo e falou sobre sua mais profunda identidade messiânica: “ Embora fosse de condição Divina, Cristo não fez de seu ser igual a Deus uma usurpação, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se semelhante aos homens” (Fl 2, 6-7). Ante o desejo tão inerente a nós mesmos,tão presente entre nós, em nossas comunidades, em ambientes clericais e carreiristas, nos jogos de poder por vezes encontrados também na realidade eclesial, Paulo recorda aos irmãos Filipenses quem é Cristo: É o menor, o que se fez último, o messias pleno de realeza, mas sempre servidor de todos: “ Por isso Deus o exaltou, acima de tudo e lhe deu o nome acima de todo nome” (Fl 2, 8). São Paulo aos Filipenses nos exorta que “31 E começou a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do homem padecesse muito, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas, e fosse morto, mas ressuscitasse depois de três dias.” (Lc 9, 34).

O que mudou então em Cristo ou o que precisa ser modificado em nós para compreendermos mais profundamente o mistério central de nossa fé que começa neste domingo da Paixão. Em Cristo Nosso Senhor nada. Os santos Padres da Igreja já definiram acertadamente a teologia referente as diferenças e unidades acerca das duas naturezas em Cristo: “ Salvaguardadas pois as propriedades de ambas naturezas e substâncias, unidas numa só pessoa, foi assumida a humildade pela realeza, pela força a fraqueza, pela mortalidade a eternidade (…) Para configurar-se a nós e nos salvar: a natureza inviolável, uniu-se a passível. Assim como o remédio conveniente à nossa cura, um só e mesmo mediador entre Deus e o homem (…) tenha Ele participado de nossa natureza humana, não foi de nossos defeitos, no princípio assumiu a condição de servo, mas não a mancha do pecado, exaltou o que é humano, sem subtrair qualquer coisa do Divino (…) fez-se homem na condição de servo, resguardando as duas naturezas sem alteração, mudança. Como a natureza de Deus não mudou a natureza de servo, assim a natureza de servo, não alterou a natureza de Deus” (Tomus ad Flavianus; n. 1).

Com a natureza de Cristo servo de Deus, Deus de Deus, Luz da luz, esta tudo ok. Já os santos teólogos sabiam e atestavam com grande eloquência. O que deve mudar esta dentro de nós. A perspectiva que deve ser transformada mora dentro de nós. É de lá, que deve sempre ser acesa a plena intuição sobre Cristo. Que aquele que quiser ser o maior seja o que que serve a todos. Neste final de quaresma e início de semana Santa, deixemo-nos “lavar os nossos pés por Cristo”. Há muitas realidades que precisam ser purificadas dentro de nós. Com certeza dentre elas deve estar aquela ilusão messiânica dos contemporâneos de um Cristo que solucionará todos os problemas do mundo, as injustiças, o mal. Lembremos que na narrativa da paixão, que é também lida nesta liturgia há também um certo Cireneu: “enquanto levavam Jesus, pegaram um certo Simão de Cirene, que voltava do campo, e impuseram-lhe a cruz para carregá-la atrás de Cristo” ( Lc 19, 26). Cireneu somos nós que como ele caminhamos atrás de Cristo, carregando a cruz nossa e a de nossos irmãos e completando o que falta no corpo de Cristo.

 

“Correr em direção a Cristo ainda nos interessa

V Domingo da Quaresma

( Is 43, 16-21; Sl 125; Fl 3, 8-14; Jo 8, 1-11)

“ (…) prefiro uma Igreja acidentada, ferida, enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento de se ter agarrado às próprias seguranças (…)” (EG, 2).

 

A citação acima extraída de uma exortação do Papa Francisco é para todos nós sempre provocadora. Por vezes precisamos ser provocados, às vezes necessitamos que alguém nos desperte do sono, do comôdismo e de uma sensação analgésica em que se encontra nossos caminhos de evangelização. A Igreja existe para evangelizar (EN 14); esta é sua natureza e missão, aqui reside a razão de ser da Igreja, e evangelizar é de alguma forma movimentar, transformar, tocar as mais diversas realidades da existência humana.

A liturgia do V domingo da Quaresma recorda-nos este viés da evangelização da Igreja: sua saída o encontro com Cristo e com as gentes. Esta saída é apresentada neste final de semana com uma palavra no mínimo similar e encontrada na epístola de Paulo aos Filipenses: lá em vez de saída, encontra-se o termo “corrida”, e ele é tão simbólico quanto ao anterior. A corrida lembra-nos o Evangelho de são João, em que João e Pedro, correram juntos até o túmulo (Jo 20,ss); lembra-nos a corrida dos atletas no estádio comparada à vida eterna em (1 Cor, 9, 21,  e aindaque toda a corrida pelo reino não deve ser em vão (Gl 2, 2). Mas hoje correr ganha novo acento nesta liturgia. Correr aqui se conecta a algo que ainda deve ser alcançado, isto é o mistério de Cristo: “Não que já tenha recebido tudo isso ou que já seja perfeito. Mas corro para alcançá-lo, visto que já fui alcançado por Cristo” ( Fl 3, 12).

A corrida Paulina têm muito a nos ensinar. O seu desejo é alcançar àquele que um dia lhe amou e o chamou. Paulo ensina-nos em muito que Cristo não pode estar no passado. O cristianismo não deve ser acolhido por nós como peça de museu: Verdades interessantes, princípios éticos relevantes, grandíssimo ideal de vida, é preciso deixar claro que estas realidades estão presentes na fé católica, mas o cristianismo não é apenas um composto de ideias e princípios, mas uma pessoa; pessoa esta que está sempre no futuro, a frente de nós mesmos.

E isso deve nos fazer recordar que nossa evangelização deve sempre estar em saída ou melhor em corrida no dizer paulino. Em tempos complexos como os nossos, correr para anunciar com mais criatividade, urgência e prontidão o Evangelho tornam-se obrigações. Mas o que levou o apóstolo das gentes a cunhar esta expressão? Certamente o fato de ele estar um tanto acomodado. E é o próprio Paulo que conclui esta sua relaxamento espiritual: “por causa dele eu perdi tudo. Considero tudo como lixo, para ganhar Cristo e ser encontrado unido a Ele, não com minha justiça provindo da lei, mas com a justiça por meio da fé em Cristo, a justiça que vem de Deus” (Fl 3, 8-9). A acomodação teológico espiritual paulina ligava-se a sua tradição. Ele tinha uma grande orgulho de ser quem era e de te vindo de onde veio:

Ainda que também podia confiar na carne; se algum outro lembra que pode confiar na carne, ainda mais eu:
Circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; segundo a lei, fui fariseu;
Segundo o zelo, perseguidor da igreja, segundo a justiça que há na lei, irrepreensível.
Mas o que para mim era ganho reputei-o perda por Cristo” (Fl 3,4-7). Eis a causa do orgulho paulino: Ele fariseu, da tribo de Benjamin, circunciso e justificado pela lei. Para Saulo (antes de ser achado por Cristo), a corrida já havia acabada, a meta já havia sido conquistada. Tudo estava resumido, na lei, na tradição e na linhagem étnica. Notadamente, há muitos cristãos como Saulo que já pararam de correr. Há muitos clérigos dormindo em berço esplêndidos, sonolentos que pensam não ser preciso sair de si, e correr atrás de Cristo. De conteúdo diferente, mas de semelhante metodologia, exitem católicos orgulhosos também por sua tradição e estirpe. Sabem muito bem de onde vieram, famílias católicas, berços católicos, movimentos ou pastorais, e pensam que isso já basta, a sua corrida pode já ser concluída.

O Evangelho deste domingo propõe a esta forma de viver a fé um sério questionamento: “ Quem dentre vós não tiver pecado seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra” (Jo 8, 7). Diversamente de Paulo a adultera do Evangelho deste final de semana não é alguém que teve uma origem nobre e insurgiu das tribos mais consideradas de Israel: Ela é mulher e ainda fora descoberta em adultério, logo a  “lei Mosaica”  define uma punição para sua pena: “Moisés mandou apedrejar tais mulheres. Que dizes tu?” (Jo 8, 5). Se Cristo fosse só um observante da lei mosaica, a corrida daquela mulher teria sido simplificada. Após a condenação a sua vida seria abreviada. A justiça da lei seria posta em prática, legitimando um crime por lapidação em praça pública e diante de todos. Cristo não era um relativista ou um anárquico diante da tradição judaica, mas não lhe servia também o rígido legalismo da lei. O apóstolo Paulo na carta aos Filipenses fala ter sido encontrado por uma justiça de Cristo: “ (…) não com minha justiça provinda da lei, mas com a justiça por meio da fé em Cristo, a justiça que vêm de Deus na base da fé” (Fl 3, 9). A justiça da lei era meritocrática, baseada no mérito, a justiça de Cristo é misericordiosa. Quando fundada sobre os méritos, se estes não correspondidos a altura, o que resta é o juízo e a punição, quando edificada na Cruz de Cristo, o perdão e o recomeçar de novo.

Na cena da mulher adultera Cristo é transformado em um juiz. Por isso os mestres da lei e os fariseus o provocam: “Que dizes tu?” (Jo 8, 5). Ele responde inclinando-se: “ embora fosse de condição Divina, Ele não fez de seu ser uma usurpação, mas esvaziou-se (…)” (Fl 2, 5); e ofereceu o perdão: “ Eu também não te condeno. Podes ir, e de agora em diante, não peques mais” (Jo 8, 11).

Há um grande abismo entre a justiça de Cristo e a dos mestres e fariseus. Cristo rejeita o pecado, mas salva e redime o pecador, oferecendo-lhe novamente a vida. A justiça forjada no rigor da lei, equidista estranhamente as realidades diversas entre o pecado e o pecador. Na lei não ha mais saída, na justiça Cristológica, há saída e novamente possibilidade de correr para Cristo.  

“ Redescobrindo o coração de Deus!”

IV Domingo da Quaresma

(Js 5, 9-12; 2 Cor 5, 17, 21; Lc 15, 1-3. 11-32)

Celebramos neste IV domingo quaresmal o domingo laetare, o domingo alegre do retorno a casa de Deus. Como é bom sair de casa, viajar, passear, conhecer novos lugares e pessoas, mas como é salutar voltar e sentir-se em casa, no aconchego do lar. A casa tem muitos significados, é proteção, segurança, habitação, mas é sempre um lugar onde nos reconhecemos, um lugar onde recuperamos as nossas mais profundas raízes.

Nosso contexto é de dispersão e de desenraizamento! Saímos mais de casa do que voltamos. Estamos mais fora do que dentro. Nos encontramos bem mais longe de nós mesmos do que no em si” . Agostinho percebeu este “dualismo interior” no limiar de seu longo processo de conversão: “Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova… Tarde Te amei! Trinta anos estive longe de Deus. Mas, durante esse tempo, algo se movia dentro do meu coração… Eu era inquieto, alguém que buscava a felicidade, buscava algo que não achava… Mas Tu Te compadeceste de mim e tudo mudou, porque Tu me deixaste conhecer-Te. Entrei no meu íntimo sob a Tua Guia e consegui, porque Tu Te fizeste meu auxílio.

  1. Tu estavas dentro de mim e eu fora… “Os homens saem para fazer passeios, a fim de admirar o alto dos montes, o ruído incessante dos mares, o belo e ininterrupto curso dos rios, os majestosos movimentos dos astros. E, no entanto, passam ao largo de si mesmos. Não se arriscam na aventura de um passeio interior” (Conf. X, 1-2).

A gente sai, parte, deixa nossa casa, abandona o paraíso, por que queremos buscar, encontrar como na meditação agostiniana algo que pensamos estar fora, longe de nós, mas que a bem da verdade sempre esteve conosco. É o duro paradoxo humano. É um sentimento de que algo lá dentro, no mais íntimo de nós mesmos, se perdeu, e não raro conseguimos identificá-lo.

A parábola evangélica deste final de semana nos falará desta volta para casa! Propícia para o tempo quaresmal que recorda-nos que a mais plena imagem de Deus que podemos carregar na memória é a de um Pai rico de misericórdia (dives misericordiae), que sai ao encontro do que estava perdido: foi essa memória, está inefável recordação que fez com que o filho mais jovem, aquele que havia dispersado e gasto tudo com “prostitutas” (Lc 15, 30), caísse em si e lembrasse: “quantos empregados do meu pai têm pão e eu aqui, morrendo de fome. Vou-me embora, vou voltar para casa de meu pai” (Lc 15, 18). Ainda que tenha o filho mais jovem, gasto tudo, sentido a frieza da solidão invadir sua alma juvenil cheia de sonhos de liberdade e tão logo frustrada pela dura realidade da pobreza, da fome, do vazio, este jovem manifestou uma coragem que impressiona a todos: a coragem de retornar: “vou voltar para meu Pai (…) Então ele partiu e voltou para seu Pai (…)” (Lc 15, 18.20).

Há na memória paterna do jovem da parábola um interessante sentido. É sempre esta recordação, que o encoraja a voltar. Talvez para todos nós ouvintes desta parábola, ela ainda soe como uma bela peça da literatura mundial que permanece no passado, ou nas artes, ou nas representações desta passagem evangélica, ou talvez nas canções que dela surgiram. No entanto, o mistério do Pai e da forma como expressa sua paternidade, neste texto é o que mais deve chamar nossa atenção. Primeiramente por que em nosso inconsciente, a ideia de “pai”, ainda está ligada a aspectos autoritários ou de repressão. A imagem do Pai na consciência moderna associa-se sempre a uma figura forte, rígida e que “automaticamente” fomos identificando com a figura de Deus Pai n história da piedade cristã. O Evangelho revelá-nos outra coisa. A parábola expressa uma outra relação entre Pai e Filho. O Pai responde ao afastamento do filho, ao seu desregramento, a seus pecados com um grande abraço: “quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e cobriu-o de beijos” (Lc 15, 20). Há muitas maneiras de conhecermos o coração de Deus Pai. Existem muitos caminhos. Podemos trilhar em nossa vida um itinerário correto de proximidade, fidelidade e piedade, mas ele sempre se revelará misericordioso. Mesmo que a estrada feita por cada um de nós, tenha sido, semelhante a deste jovem do evangelho, o coração misericordioso do Pai, estará ali, olhando ao longe, esperando nosso retorno a casa e isso é de certa forma desconcertante. Deus é assim, não podemos manipulá-lo, ou desejar que seja feita nossa vontade em relação a Ele ou que Ele, seja a nossa imagem e semelhança e não o contrário. Nós devemos fazer sua vontade, nós devemos ser sua imagem e semelhança, agir com o coração de Deus. Ele, infringe nossas regras, e esquemas de religiosidade pelo viés desconcertante da misericórdia.]

A parábola começa com uma tensão acerca das opções de Cristo: “os publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para o escutar. Os fariseus, porém e os mestres da lei criticavam Jesus: ‘ este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles” (Lc 15, 1-2). Há também nesta história um outro filho. Ele também fala de fé e piedade a todos nós. O filho mais velho revela surpresa: afinal quem é o Pai? Pensei que o conhecia, mas vejo que ainda não o conheço muito bem. Assim como os mestres e fariseus que não compreendiam Jesus por suas estranhas opções em comer com pecadores, o outro filho, não compreendeu o perdão e a misericórdia em relação a seu irmão.

Paradoxalmente para o filho mais novo e pecador, o retorno à casa, revelou um Pai amoroso e misericordioso. Um Outro, em quem pode encontrar-se consigo. Para o filho mais jovem, que sempre esteve em casa, um desconhecido. Alguém que quando revelou-se não ser sua auto-imagem,  transformou-se num enigma: “ele ficou com raiva e não queria entrar (…) eu trabalho para ti a anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua e tu nunca me deste um cabrito para festejar com meus amigos” (Lc 15, 29).