“Domingo da Paixão, o serviço como expressão da realeza”

Domingo da Paixão

( Lc 19, 28-40; Is 50, 4-17; Fl 2, 5-12; Lc 23, 1-49)

Iniciamos com esta liturgia a semana Santa até sua conclusão com as celebrações do Tríduo Pascal em nossas comunidades eclesiais.

A liturgia deste domingo da Paixão nos apresenta dois movimentos teológicos não obstantes contrastes e difíceis de serem compreendidos por nós neste nosso tecido social, mas também de lento acesso para os contemporâneos de Jesus, seus discípulos e adversários espirituais. Jesus, no Evangelho introdutório, é revestido de uma realeza triunfal e logo após reveste-se do mais absoluto rebaixamento existencial. Aclamado como rei, é recebido na capital Jerusalém com cantos, hinos e aclamações messiânicas e tão logo irá se achar nos últimos dias de sua vida, zombado, ultrajado, torturado e acima de tudo: amplamente desacreditado. A partir deste profundo paradoxo que a liturgia do domingo da Paixão nos apresenta perguntamo-nos: O que realmente aconteceu para que houvesse uma mudança tão radical na perspectiva das multidões sobre o messianismo de Cristo? Ou nossa pergunta poderia ser feita a partir do próprio Cristo, de seu mistério mais profundo: Houvera uma transformação existencial propriamente em Cristo? Ambos questionamentos não devem ficar apenas no mundo das ideias, da mera especulação filosófica. O cristianismo não é um sistema filosófico ou social apenas. É sempre a pessoa de Cristo. E é esta realidade que deve iluminar nossas mentes e coração para compreendermos a Palavra (Lc 24, ss).

Na primeira leitura o cântico do servo de Isaías (Is 50, 4-7) apresenta-nos uma singular imagem do messias: Ele nesta perspectiva não é configurado a um rei, mas nem por isso, perderá sua função na realeza. Ela continua presente, inerente a ele, mas no linguajar profético de Isaías, é denominado “Servo” ou “messias servidor”: Alguém que resgata e salva não a partir do poder mas da humilhação, da obediência, de um oferecimento dos próprios sofrimentos. Conclui-se assim que o significado mais profundo deste messianismo esta associado à características opostas àquelas que as multidões depositavam em um primeiro momento em Cristo. Recordemos a resposta de Cristo, logo após a profissão Petrina acerca de seu messianismo:  “ 31 E começou a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do homem padecesse muito, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas, e fosse morto, mas ressuscitasse depois de três dias

O servo que o profeta Isaías oferece o exercício de seu messianismo nesta mesma ótica. Não somente para dentro de uma ação temporal, social e política, sua amplitude é bem maior e mais profunda. A libertação por ele oferecida ao invés se sustentar-se apenas no poder ou força temporal, fundamenta-se na entrega, na humilhação e no oferecimento de si. Isto será sempre de difícil compreensão a todos nós. Nossas expectativas de salvação e libertação estão sempre associadas a uma forma de poder e não a “forma servi”. Por isso sua realeza messiânica é bem mais vicária e expiatória do que autoritária e política. Se existe uma ato político no messias servo de Isaías, ele funda-se na obediência, no serviço ao próximo e na oferta gratuita de si mesmo: “O Senhor abriu-me os ouvidos, não lhe resisti nem voltei atrás. Ofereci as costas para me baterem e as faces para me arrancarem a barba, não desviei o rosto de bofetões e cusparadas (…) conservei o rosto impassível como pedra, por que seu que não sairei humilhado” (Is. 50, 4-7).

Na carta de Paulo aos cristãos de Filipos daremos um outro passo no mistério messiânico e soteriológico de Cristo. É certo que esta comunidade nascente, era muito estimada pelo apóstolo. As recordações de Paulo aos Filipenses são sempre muito empáticas. Paulo estabeleceu profundos vínculos com esta comunidade primitiva, mas nem por isso, se absteve de corrigi-los e exortá-los quando se fez necessário. É possível que estes cristãos apresentassem serias disputas entre si por uma possível liderança. O que costumeiramente acontece em comunidades que conhecemos: boas, vivas, ricas de ministérios e serviços, mas aqui e ali, percebe-se as disputas, as rixas a velha pergunta: “ Quem é o maior no Reino de Deus? (Mc 9, 34). Paulo não tomou uma criancinha e colocou-a no seu meio, como fez o seu mestre. Ele tomou a própria imagem de Cristo e falou sobre sua mais profunda identidade messiânica: “ Embora fosse de condição Divina, Cristo não fez de seu ser igual a Deus uma usurpação, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se semelhante aos homens” (Fl 2, 6-7). Ante o desejo tão inerente a nós mesmos,tão presente entre nós, em nossas comunidades, em ambientes clericais e carreiristas, nos jogos de poder por vezes encontrados também na realidade eclesial, Paulo recorda aos irmãos Filipenses quem é Cristo: É o menor, o que se fez último, o messias pleno de realeza, mas sempre servidor de todos: “ Por isso Deus o exaltou, acima de tudo e lhe deu o nome acima de todo nome” (Fl 2, 8). São Paulo aos Filipenses nos exorta que “31 E começou a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do homem padecesse muito, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas, e fosse morto, mas ressuscitasse depois de três dias.” (Lc 9, 34).

O que mudou então em Cristo ou o que precisa ser modificado em nós para compreendermos mais profundamente o mistério central de nossa fé que começa neste domingo da Paixão. Em Cristo Nosso Senhor nada. Os santos Padres da Igreja já definiram acertadamente a teologia referente as diferenças e unidades acerca das duas naturezas em Cristo: “ Salvaguardadas pois as propriedades de ambas naturezas e substâncias, unidas numa só pessoa, foi assumida a humildade pela realeza, pela força a fraqueza, pela mortalidade a eternidade (…) Para configurar-se a nós e nos salvar: a natureza inviolável, uniu-se a passível. Assim como o remédio conveniente à nossa cura, um só e mesmo mediador entre Deus e o homem (…) tenha Ele participado de nossa natureza humana, não foi de nossos defeitos, no princípio assumiu a condição de servo, mas não a mancha do pecado, exaltou o que é humano, sem subtrair qualquer coisa do Divino (…) fez-se homem na condição de servo, resguardando as duas naturezas sem alteração, mudança. Como a natureza de Deus não mudou a natureza de servo, assim a natureza de servo, não alterou a natureza de Deus” (Tomus ad Flavianus; n. 1).

Com a natureza de Cristo servo de Deus, Deus de Deus, Luz da luz, esta tudo ok. Já os santos teólogos sabiam e atestavam com grande eloquência. O que deve mudar esta dentro de nós. A perspectiva que deve ser transformada mora dentro de nós. É de lá, que deve sempre ser acesa a plena intuição sobre Cristo. Que aquele que quiser ser o maior seja o que que serve a todos. Neste final de quaresma e início de semana Santa, deixemo-nos “lavar os nossos pés por Cristo”. Há muitas realidades que precisam ser purificadas dentro de nós. Com certeza dentre elas deve estar aquela ilusão messiânica dos contemporâneos de um Cristo que solucionará todos os problemas do mundo, as injustiças, o mal. Lembremos que na narrativa da paixão, que é também lida nesta liturgia há também um certo Cireneu: “enquanto levavam Jesus, pegaram um certo Simão de Cirene, que voltava do campo, e impuseram-lhe a cruz para carregá-la atrás de Cristo” ( Lc 19, 26). Cireneu somos nós que como ele caminhamos atrás de Cristo, carregando a cruz nossa e a de nossos irmãos e completando o que falta no corpo de Cristo.

 

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